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“Remasters: Restauração ou Destruição?”

Procura-se "reescrever o passado. E ao fazê-lo, destruir irremediavelmente a nossa relação com ele".


Um dos fenómenos recentes no meio tem sido o ritmo crescente na produção de reedições de videojogos consagrados. Sendo certo que este tipo de re-lançamentos não é novo, nunca atingiu as proporções atuais, configurando-se hoje como uma parte importantíssima do mercado videolúdico. É uma tendência que tem sido recebida muito positivamente, com público e críticos a verem nestes títulos excelentes oportunidades para revisitar os clássicos, com o benefício de significativas melhorias a nível audiovisual e de jogabilidade. E frequentemente vê-se enaltecido o esforço das editoras em manter a memória viva destes videojogos, insinuando-se que se trata de um esforço de cura da história dos videojogos. O que será talvez a grande ironia de tudo isto, dado que estas remasterizações buscam fazer exatamente o oposto: reescrever o passado. E ao fazê-lo, destruir irremediavelmente a nossa relação com ele.

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Foi na transição da sexta geração (DC/PS2/Xbox/GC/GBA) para a sétima que este movimento ganhou força. As razões para ter ocorrido nesse período foram duas – o desaparecimento da retrocompatibilidade e o fim dos CRTs. Durante a chamada sexta geração, a retrocompatibilidade era uma qualidade comum às duas plataformas mais populares (a Playstation 2 e o Gameboy Advance), o que popularizou, e bem, o acesso aos videojogos de gerações anteriores em hardware contemporâneo. Esse facto, novo à altura, abriu o precedente, e daí em diante os jogadores habituaram-se ter acesso a uma biblioteca com um horizonte temporal mais vasto. Como as plataformas principais da sétima geração, a Xbox 360 e a Playstation 3, não conseguiram tornar a retrocompatibilidade economicamente viável (a 360 tinha uma emulação deficiente da Xbox e só uma edição mais cara de produzir da PS3 continha o processador da PS2), não havia como lidar com a procura desse recém-inaugurado mercado. A necessidade de usufruir de jogos antigos ficava assim totalmente dependente de reedições lançados pelas editoras.

ImagemUma reprodução representativa do aspeto visual de "ICO" na PS2.


Mas para o quadro ficar completo, temos que lembrar que foi a transição para a era de alta definição, com a grande maioria dos jogadores a acabar por comprar um novo tipo de televisões – os LCD’s. O problema aqui é que a sua capacidade de reproduzir conteúdo de baixa definição é medíocre, com o obrigatório processo de escalonamento de imagem a introduzir diversos artefactos (tipicamente um misto de aliasing e suavização agressiva, que dá a tudo um ar pixelizado e baço). Ao descaracterizarem a dimensão gráfica dos videojogos, os LCDs impedem a sua correta experienciação, fazendo obras antigas parecerem mais feias do que eram realmente. E quanto mais reduzida for a definição do jogo original, maior a distorção aplicada pelo ecrã: tentem jogar "ICO" numa PS2 ligada a um LCD e verão um jogo muito diferente do que experienciaram em 2001. E isto era um jogo recente; muito pior destino têm jogos de gerações anteriores. Com essa aparentemente minúscula mudança de suporte tecnológico, o meio sofreu uma brusca revolução, e agora não bastava apenas guardar as consolas antigas (processo que já de si tinha vários problemas) para ter acesso imaculado a videojogos passados.

ImagemO remaster HD original: "God of War Collection". Embora um trabalho tecnicamente competente pela Bluepoint Games, mostra a falência desta abordagem na sua génese: o detalhe acrescido põe às claras a arte de baixa definição, gerando um desagradável contraste entre a limpidez da imagem global, e a qualidade turva das texturas. Este seria o padrão comum a quase todos os remasters: ao aumentar a definição, permite-se ao jogador acesso a informação nova, assim dando evidência a mil e uma imperfeições que eram invisíveis no original.


A resposta do mercado foi, infelizmente, uma resposta interesseira. O surgimento das coleções HD deveria ter como objetivo, e pelo menos assim estava implícito na sua retórica comercial, a preservação desses clássicos da geração anterior que agora estávamos impedidos de usufruir corretamente. Só que na ânsia de arranjar novos argumentos de venda que ajudassem a valorizar estas edições, foi-se mais longe que simplesmente adaptar as obras originais e corrigir, de forma conservadora e cuidada, como estas obras eram apresentadas nos nossos ecrãs. Não bastava recuperar os clássicos como eles eram! Era preciso vendê-los, e no arsenal de um vendedor de tecnologia que se preze, não há nada como números e dados tecnológicos, e um ar de modernização e atualidade para ajudar a vender o velho como novo. Daí, reeditaram-se os jogos em 1080p, 3D e a 60fps, com som 5.1, mais polígonos e texturas com maior definição. Pior ainda, no caso da SONY, retiraram-se estes títulos na sua forma original do seu sistema de distribuição digital, como que a forçar a compra da versão "melhorada".

Imagem"ICO" em HD: embora não totalmente desprovido de ambiência, a clareza do olhar da câmara destrói uma das ilusões estéticas características do original. E isto é um "bom" remaster.


E se houve casos catastróficos a que não falhou o repúdio da imprensa especializada, não se pode dizer que os casos de sucesso devam ser isentos de crítica como têm sido. Tome-se a coleção de "ICO" e "Shadow of the Colossus" da Bluepoint Games. O aumento drástico da definição de renderização de "ICO" trocou a ambiguidade e sujidade leitosa da ambiência original por uma clareza e precisão clínicas que destroem a atmosfera onírica que Ueda procurava. Experimentem jogar o original num CRT e a nova versão e verão que quase não parece o mesmo videojogo: a estética mudou radicalmente. E "Shadow of the Colossus"? Embora muito menos mal tratado (o aumento da definição é reduzido), acumula a sua dose de adições defeituosas na transição para HD: uma taxa de refrescamento que nunca foi contemplada no original, que lhe conferencia uma cadência visual ostensivamente diferente, animações que não atualizam lado a lado com essa taxa, e até um agressivo pop-up de objetos cénicos num horizonte que era até ora invisível. Tudo manchas num pano que se quereria imaculado em honra das maiores criações videolúdicas da história.

ImagemA infame "Silent Hill HD Collection" à direita, o original na esquerda. Embora um trabalho grotesco a nível técnico (com bugs e glitches novos e um frame-rate inconsistente), exemplifica in extremis os males subjacentes ao modo como se remasterizam videojogos: mais um upscaling sem preocupação em manter a atmosfera original e uma nova dobragem só porque se precisava de preencher as fontes de som 5.1.


Estas pequenas mudanças cosméticas alteram radicalmente esses videojogos, e foram introduzidas propositadamente para deturpar o original em vez de o preservar. Mas nem os 1080p e afins bastaram como argumento de venda e foi-se frequentemente muito mais longe. Com o tempo, houve espaço para a adição de novas dobragens ("Silent Hill HD Collection"), novas orquestrações de banda sonora ("Final Fantasy X/X-2 HD"), correção de bugs ("Ocarina of Time 3D"), adição de novos sistemas de controlo e câmara ("Resident Evil Remaster"), e até a alteração de secções de jogo mal recebidas ("Wind Waker HD"). Tudo para ‘corrigir’, ‘melhorar’ e ‘amplificar’ o original. Mas não era o original que queríamos preservar? Não era ele que era tão bom e genial e importante para nós que queríamos ter acesso a ele para sempre?

Na verdade, não falamos de reedições, nem de remasterizações destes títulos; falamos de autênticos quasi-remakes, em que uma terceira parte efetua um sem fim de pequenas adições e subtrações ao original criado pelo autor. Porque os videojogos habitam num meio tecnológico, o original tende a ser visto como (tecnologicamente) datado, logo, não sendo suficientemente bom. Por detrás deste julgamento está uma ideologia que reduz a valorização dos videojogos à sua base tecnológica. Esse olhar tecno-fetichista, obcecado por números ocos - de pixeis, de polígonos, de shaders, de fontes de som - deturpa a nossa memória colectiva desses videojogos. Sim, o som era stereo há 10 anos atrás, e a imagem era de baixa resolução, e as bandas sonoras eram criadas em sintetizadores limitados, e os sistemas de jogo eram mais castigadores. Sim, e os jogos eram maravilhosos independentemente disso! Essa é a história real dos videojogos como e é essa memória que deveríamos querer guardar impoluta.

ImagemNos outros media também houve momentos em que se cometeram atrocidades na tentativa de "remasterizar" obras de arte, como a deplorável tentativa de colorir películas filmadas a preto-e-branco, ou de dobrar filmes mudos. Em cima, "Casablanca", obra maior de Michael Curtiz, conhecida pela sua cinematografia em chiaroscuro, acaba violada pela ridícula adição de uma palete de cores berrantes. Porquê? Porque o espetador moderno esperava um filme a cores, análogo a como jogador contemporâneo espera um jogo em HD.


Por muita habilidade técnica que haja nos estúdios encarregues destes processos, não há, evidentemente, qualquer agenda de preservação do legado videolúdico, apenas uma de comercialização e artificiosa beatificação dos originais. O problema aqui é que as editoras não têm interesse em preservar os videojogos, mas sim em vendê-los, e orientam tudo nesse sentido. E como não houve ainda uma sensibilização para a adequada escolha dos critérios a usar em reedições desta natureza, os jogadores comem gato por lebre. Em parte compreende-se, é um campo de exploração novo, num meio novo, e num cujo valor artístico ainda não está, de todo, consagrado. Felizmente, ainda podemos usufruir destes videojogos na sua forma original, pelo menos enquanto estivermos dispostos a manter uma sala repleta de hardware obsoleto, e enquanto ele não se avariar irremediavelmente. Mas e quando as consolas e as televisões começarem a falhar? E num futuro distante em que as únicas consolas e títulos funcionais estiverem em museus, barradas do nosso acesso? O que fazer nessa altura, quando quisermos jogar os clássicos como eles foram idealizados?

ImagemUm genuíno processo de remasterização. "M", de Fritz Lang: à esquerda, uma transferência imperfeita para DVD, com a adição de halos luminosos e contraste artificial; à direita, uma transferência póstuma para bluray, pela Criterion. Note-se o retirar dos cortes verticais resultantes de desgaste da película, o reequilibrar dos níveis de contraste, e a clareza e definição superior da imagem final, não para embelezar o filme artificialmente, mas para recuperar o detalhe perdido que estava presente na película de 35mm original.


Noutros meios, como o cinema ou a música, o problema está largamente resolvido, com cópias originais largamente disponíveis em novos formatos, e com as reedições a terem, salvo exceções ocasionais, um mínimo de cuidado no processo de remasterização. Por exemplo: uma remasterização em bluray pela Criterion é um gesto de respeito enorme pelas criações dos grandes cineastas, uma réplica fidelíssima, recuperada com minúcia, sem quaisquer adições ou subtrações audiovisuais supérfluas à película em que se baseia. Honra todos os princípios de um restauro artístico, usando os avanços tecnológicos para aproximar, tanto quanto possível, a cópia ao artefacto original. É esta nova forma de conservação que existe nos mass media que é essencial adotar nos videojogos. Para o fazer é preciso um ideário ético baseado no respeito pelas qualidades do artefacto original. Embora o que esteja em jogo não seja a conservação dos artefactos em si (um trabalho para museus de videojogos como o "National Videogame Archive"), mas a preservação da sua memória através de um acesso popular a estas obras na sua forma original, podemos usar os princípios da conservação artística para deduzir um conjunto de linhas mestra que deveriam governar estes processos de reedição.

Há três princípios matriciais na conservação, dos quais dois são relevantes para os videojogos. Primeiro, o da intervenção mínima, isto é, evitar quaisquer intervenções criativas que alterem a obra. E segundo, a discernibilidade e reversibilidade das intervenções, ou seja, todas as mudanças que sejam feitas na obra, mesmo que na busca de uma forma mais próxima da original, devem ser cuidadosamente documentadas e passíveis de ser revertidas a qualquer momento.

ImagemImagem de um jogo na ATARI VCS; à esquerda como ele parece num LCD ao natural, e à direita, com aplicação do filtro idealizado por Ian Bogost para emular CRT num LCD.


A partir destes princípios podemos trilhar um caminho para os remasters. O primeiro é que o esforço de remasterização deve ser em conseguir replicar o aspeto original da obra. Isso implica começar por usar métodos de emulação das imagens em CRT para televisores atuais (e futuros) que operam em alta definição, mantendo as propriedades imagéticas do original (cor, contraste, brilho, etc.), sem introduzir artefactos ou informação nova que não esteja presente no original. Ian Bogost, conhecido apaixonado pela ATARI VCS, promoveu a introdução de um filtro emulador de CRT no emulador STELLA, e felizmente, têm vindo a surgir outras bibliotecas com filtros de imagem e som para emuladores de outras consolas (NES, SNES, MD, etc.) que seguem a mesma filosofia. Esta remasterização – que busca recuperar as dimensões sensoriais destes jogos – é que é respeitadora das obras no seu estado original.

Mas é possível arranjar um compromisso entre a restauração e o apelo comercial. Se houver um restauro digno do videojogo em questão, pode-se apresentar o mesmo lado a lado com uma versão amplificada do original criada para vender, desde que anunciada como tal (expandido nós, de forma algo abusiva, o princípio da discernibilidade e reversibilidade das alterações). Alguns remakes têm ido por um caminho similar, como "Halo Anniversary" ou "The Secret of Monkey Island Special Edition". Não só foram honestos em assumirem-se frontalmente como remakes, como em ambos é dada opção ao jogador de trocar o jogo na sua forma (mais ou menos) original pela do remake. Não sendo ideal, e não sendo o original bem tratado, esta abordagem pelo menos lembra às pessoas como o jogo era na sua origem.

ImagemO controlador de "Steel Batallion". Será que a Capcom algum dia se atreve a reeditar este jogo? Podemos sonhar…


Para terminar, há a considerar a questão dos dispositivos de controle. Há atualmente um grande foco na remasterização audiovisual, que acaba por ignorar os comandos com que jogamos estes jogos; ora, não podemos conceber um remaster estritamente audiovisual, dado que o meio é interativo e essa dimensão é crucial para realizar a experiência como ela foi desenhada. Por exemplo, jogos com comandos customizados como "Steel Batallion", "Dance Dance Revolution", ou que usem o Wiimote, são injogáveis com comandos standard, ilustrando perfeitamente que o comando é parte integrante da experiência de jogo. A Nintendo percebeu isso quando decidiu produzir de novo o comando de Gamecube para um novo "Smash Bros"; nada nos impede de jogá-lo e ao seu predecessor com os controladores da WiiU, mas o comando estava casado com o sistema de jogo original, sendo essencial para o usufruto do mesmo. Por essa razão, uma parte considerável do esforço em reedições contemporâneas deveria ser direcionado nesse sentido. Idealmente, isso passaria por distribuir réplicas dos comandos originais com os remasters (o que sim, seria custoso e comercialmente inviável na maior parte dos casos). À falta disso, pelo menos desenhar sistemas de controlo que emulem as propriedades do original, usando mapeamentos de controlo semelhantes, ou empregando os interfaces disponíveis da forma que mais se aproxime da original (como a Nintendo fez com os comandos de Wii na horizontal para simular o comando da Famicom). E claro, nunca, mas nunca mexer no sistema de jogo, na busca de o "melhorar".

Um remaster só será realmente um remaster se visar a preservação da memória do artefacto original, e isso implica que se usem os cuidados aqui enumerados no processo. Não quer isto dizer que o atual processo de remasterização seja um anátema ou uma ofensa insanável aos videojogos. Não é. Simbolicamente, demonstra que os jogadores prezam o passado dos videojogos e que procuram ativamente acesso a ele, mesmo que numa forma deturpada e imatura. Cabe por isso ao meio educar-se sobre como a memória destes videojogos deve ser homenageada e preservada, para que as editoras depois cumpram a sua função de vender um serviço de remasterização a sério. Porque o status quo tem inevitavelmente de mudar. Dentro de poucos anos, a única forma de experienciarmos videojogos clássicos será através de reedições ou de emulação (com todas as questões técnicas e legais que levanta), donde este assunto é de importância magistral. É o passado histórico dos videojogos que está em jogo.

Rui Craveirinha é investigador e professor convidado na Universidade de Coimbra, trabalhando com temas ligados aos videojogos. Crítico videolúdico mordaz nos tempos livres, tem a mania de julgar os videojogos à luz da arte, raramente conseguindo fazê-lo sem os destruir no processo.

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Referências:

A Television Simulator, CRT Emulation for the Atari VCS in bogost

Blargg's NTSC Libraries in slack

How To Make SNES Games Look More Retro in thedailybuggle

'Casablanca' gets colorized, but don't play it again, Ted in rogerebert

Fritz Lang in DVDCompare7

Fonte: Pt/Ign

Comentários

28 Jan, 2015 - 19:59

Comentários

andersonzero 29 Jan, 2015 17:03 0

o Silent hil ta trocado na descrição da imagem, o hd é o da esquerda

jaimenunes 29 Jan, 2015 15:09 0

spaizer escreveu:remasterização pra mim é oq fizeram com o Ducktales e afins, tudo diferente disso é só caça-niquel.


Ducktales é remake, não remaster como colocaram no nome.

Voddyhunter 28 Jan, 2015 23:22 3

os caras parecem que só "esticam" a imagem e já eras, tinha era que refazer o jogo de novo, cuidar de cada detalhe, RE:HD é um belo exemplo disso, o jogo ficou bom, mas poderia ter ficado muito melhor... ainda bem que pra pc tem os moders que com certeza vão melhorar e muito o jogo...

Edu0101 28 Jan, 2015 22:41 0

spaizer escreveu:remasterização pra mim é oq fizeram com o Ducktales e afins, tudo diferente disso é só caça-niquel.


concordo!!!!

spaizer 28 Jan, 2015 21:05 3

remasterização pra mim é oq fizeram com o Ducktales e afins, tudo diferente disso é só caça-niquel.